Topo

Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por uma vida e uma literatura livres, desabitadas pelo poder

26.jun.2023 - Lula recebe presidente da Argentina, Alberto Fernández - Divulgação/Ricardo Stuckert
26.jun.2023 - Lula recebe presidente da Argentina, Alberto Fernández Imagem: Divulgação/Ricardo Stuckert

Colunista do UOL

01/07/2023 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Caminhando a passo lento entre sujeitos eriçados, ofuscado pela aura das figuras eminentes, eu era apenas um homem. Ao meu redor via uns quantos vultos poderosos da política institucional, via dois presidentes, uma dezena de ministros, incontáveis senadores, deputados, secretários, chefes de gabinete. Reconhecia seus rostos sem muito esforço e, no entanto, não tinha vontade nenhuma de me juntar a eles, de abrir espaço numa roda de ternos impolutos e risos estridentes, de tentar somar meu riso ao dos outros ou comentar qualquer coisa em que eu não acreditasse plenamente.

Ainda agora não entendo bem por que me convocaram ao almoço cerimonial entre Lula e Alberto Fernández, que sentido tinha a minha presença naquela confraternização ociosa entre dois presidentes e seus séquitos. Sem dúvida era lisonjeiro ser convidado a um encontro desses, e sobretudo era tranquilizador que o governo já não dedicasse a um escritor como eu o desprezo dos últimos anos, que em seus piores momentos se converteu em perseguição, intolerância e conclamação à violência. Ainda assim, tudo o que eu sentia naquele ostensivo palácio, tudo o que eu sentia como testemunha de um novo tempo, era o meu próprio deslocamento, o sem-sentido da presença de um escritor em meio aos detentores do poder.

A política, essa política feita por velhos sujeitos de terno em sua vociferação infinita, essa política que nos últimos anos exigiu nossa atenção ininterrupta, nossa profunda preocupação cotidiana, essa política já não me interessava nada, já pouco me interessa. Não há alienação nesse pensamento, quero crer. Trata-se do retorno desejável à multiplicidade da existência, a uma vivência diária que comporte mais que as notícias urgentes de Brasília, uma vivência que preserve o direito à distração, que garanta o lugar da leveza, do lirismo, do devaneio. Se algo eu tinha a dizer a Lula, foi o que ali cogitei embora guardando minha distância justa, não seria mais que um breve agradecimento por essa libertação, por ter devolvido a civilidade ao poder e assim nos dispensado do nosso interesse descomedido, da nossa agonia longeva.

À literatura talvez não caiba uma intimidade excessiva com o poder, a ponto de já não saber se diferenciar dele. Ao discurso literário também não cabe se confundir por completo com o discurso político, com suas afirmações incisivas, suas certezas indubitáveis, seus dogmatismos. Escritores e políticos são feitos de carnes distintas, e sobretudo dispõem de distintas línguas. O que vimos em anos recentes, uma cultura que abdicou de liberdades e dispensou elementos artísticos para incidir sobre o presente, escritores e artistas dissipando complexidades e se associando ao jornalismo para denunciar o exercício atroz do poder, tudo isso teve decerto sua razão de ser, mas é possível que tenha encontrado seu limite.

Por anos me vi a defender a necessidade de uma literatura ocupada, de uma arte ocupada pelos tremores do presente. Em tempos excepcionais, historicamente determinados, a arte se engaja, a arte se transforma para tentar dar novos rumos a uma sociedade, para promover guinadas no debate público. Como ruas e praças têm suas funções alteradas quando o povo as ocupa, também a arte ocupada muda de função, torna-se território inesperado para o embate político. Mas chega o dia em que ruas e praças se esvaziam e recuperam seu movimento habitual, enchem-se de outra vida. Chega o dia em que a arte se desocupa e recupera seu silêncio original, ponto de partida para seu próximo discurso.

Me pergunto, ainda timidamente, se será tempo de desocupar a literatura dessa política mais ruidosa e rasteira, dessa política que não é e não será sinônimo da vida. Não para que se torne alienada ou acrítica, frívola ou indiferente, mas para que possa chegar a ser algo mais do que tem sido. Para que nela desponte enfim a experiência em sua amplitude, para que nela caiba a máxima diversidade de afetos e perspectivas. Para que nela ganhe espaço também aquilo que há de eminentemente político no cotidiano, no comum, aquilo que também se deixou sufocar pelas disputas partidárias e pelo rumor interminável das notícias. E o mesmo talvez valha para a vida em si, não apenas para a literatura. Me pergunto se não será tempo de desocupar a vida dessas muitas urgências oficiais, para que possamos voltar a existir livres e desabitados pelo poder.

Caminhando a passo lento entre sujeitos eriçados, ofuscado pela aura das figuras eminentes, eu era um homem solitário. O que eu queria era sair dali e me juntar a todos os escritores ausentes daquele almoço, me juntar a todas as pessoas que existem distantes daquele mundo, à revelia daquele mundo, e que não têm por que dissipar tanto pensamento nas escaramuças do poder. Queria me juntar de novo à turba e com ela me distrair, celebrar brevemente que a atrocidade já não está apta a chegar à presidência, e então observar a limpidez dos céus e ouvir o aprazível silêncio das ruas.

*

Um fazendeiro excêntrico cria um safári africano, uma cidade famosa por seus caixões? Em "OESTE", nova série em vídeos do UOL, você descobre estas e outras histórias inacreditáveis que transformam o centro-oeste brasileiro. Assista:

Siga Ecoa nas redes sociais e conheça mais histórias que inspiram e transformam o mundo
https://www.instagram.com/ecoa_uol/
https://twitter.com/ecoa_uol

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL